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25 abril, 2011

A Cobra e a Lima

Conta-se que uma cobra vivia vizinha de uma relojoaria. Um dia ela entrou na oficina atrás de alguma sobra, mas de comida, ali, nem cheiro. Nada encontrando para satisfazer a sua fome e, com o apetite redobrado ao ver uma lima, se põe a roê-la.
A lima então lhe diz:
- Que pretendes fazer, pobre infeliz? Não vês que sou feita de aço? E que, antes de me prejudicar, você está prejudicando a si mesma? Não percebes que não terás dentes para usar, e eu continuarei intacta, pois não conseguirás tirar de meu corpo o menor pedaço? A mim nada causa contratempo. Os únicos dentes que podem me afetar são os dentes do tempo!
Esta história se endereça a vós que só sabeis criticar, nada mais. A tudo e a todos mordeis, imprimindo a marca ultrajante de vossos dentes, mesmo sobre as obras-primas.
Será que podeis roer essas "limas"? Não se esqueçam: elas são de aço, bronze e diamante!
A TRAÇA NÃO RÓI
Os bens espirituais que adquirimos são de posse definitiva; portanto, ninguém dá ou tira o valor dos outros. É imprescindível não esquecermos que quem fez por merecer recolhe a felicidade de ver multiplicado tudo aquilo que conquistou.
Aquele que realmente alcançou ou obteve a posse dos dons da criatividade, da expressão, da lucidez, da compaixão, da liberdade, da naturalidade, da alegria, do desapego e de outras tantos valores universais, é como o homem que ajuntou "tesouros no céu, onde nem a traça nem a ferrugem os consomem, e onde os ladrões não minam nem roubam". (Mateus, 6:20)
Assim como a cobra desta fábula, muitas pessoas acreditam que podem desabonar (roer) a vida de outrem, caluniando-os ou difamando-os com afirmações falsas e desonrosas a seu respeito.
Certas criaturas, como o réptil, "Nada encontrando para satisfazer a sua fome e, com o apetite redobrado ao ver uma lima, se põe a roê-la. ", esquecem-se de que existem homens "aço, bronze e diamante".
Quem adquiriu os "bens imortais" não os perde, mas as "cobras sociais" que tentam corromper a vida alheia não conseguem escutar as advertências da "consistência da lima": "Não vês que não terás dentes para usar, e eu continuarei intacta, pois não conseguirás tirar de meu corpo o menor pedaço?"
Infelizmente, muitos pais supervalorizam seus filhos desde pequenos, dizendo que tudo podem, inclusive "roer lima', e, quando estes crescem, sentem-se superiores. Esse sentimento envolve cada ato e atitude deles, que, de modo inconsciente, consideram-se elevados ao mais alto grau. Em vista disso, disparam recriminações, espalhando-as largamente sobre tudo e sobre todos.
Criticam porque almejam que os outros os aceitem e, "sem querer", acabam por permitir que todo mundo interfira em sua vida. Julgam, criticam e censuram, potencializando o sofrimento auto-imposto por se sentirem absolutos e incomparáveis. No fundo, todo superior se sente inferior e, conseqüentemente, recrimina os outros para chamar atenção para si mesmo.
Diante da crítica mordaz precisamos deixar a "chuva do silêncio" apagar o "incêndio da maledicência" provocado pela incompreensão e imtolerância de muitas criaturas desavisadas.
O complexo de superioridade gera uma sensação íntima de extremos opostos - de competência e de insuficiência, de extrema habilidade e de total incapacidade. Assim, tais indivíduos apresentam oscilações sistemáticas de comportamento para enfrentar a vida e seus problemas. Sentem-se incongruentes para se relacionar e profundamente inadequados diante de todos, pois, quanto mais se "elevam", mais se sentem diminuídos. Algo indefinido para eles ocupa seu espaço interno.
Ultimamente tornou-se comum o uso da expressão "complexo de superioridade" para indicar um sentimento de vaidade excessiva que não deve ser confundido com o sentimento de origem traumática ou anormal. Pode-se dizer que, em maior ou menor intensidade, todos nós já nos sentimos pretensamente melhores, mais eficientes, mais capazes que os outros.
Na atualidade, não existe o que poderíamos chamar de comunidade planetária: uma comunidade de caráter cósmico ou universal transcende os limites tradicionalistas e retrógrados em que vivemos. O que há são simplesmente grupos de pessoas críticas e receosas, sem vontade própria e facilmente manipuláveis.
Os indivíduos se reúnem numa espécie de "rebanho" ou "massa inconsciente", porque têm medo e, por medo, refugiam-se entre os seus supostos semelhantes.
Há "massas" de operários, de empresários, de religiosos, de cientistas, de filósofos, de discriminados sociais ... Todos se agrupam e criticam para se auto defender. E por que tanto se protegem? Porque desconhecem o que levam dentro de si. Só temos medo quando não vivemos de acordo com nossa realidade íntima, quando não estamos de acordo com nós mesmos. Aliás, tudo não passa de uma questão de conveniência evolutiva. Um dia, porém, cada um de nós terá de encontrar por si mesmo o "permitido" e o "proibido" .
No final desta fábula, La Fontaine deixa uma mensagem a todos aqueles que se acham inigualáveis: "Esta história se endereça a vós que só sabeis criticar, nada mais. A tudo e a todos mordeis, imprimindo a marca ultrajante de vossos dentes, mesmo sobre as obras-primas".
Há indivíduos que, por se julgarem o máximo, acabam "roendo lima". Maldizem até a mais bela obra de arte. Menosprezam, igualmente, os que adquiriram "obras transcendentais", aquelas que as traças não roem. Depreciam os bens conquistados pelos que não são escravos da opinião pública; pelos que sabem distinguir aquilo que lhes é útil daquilo que não lhes serve; pelos que dirigem seu comportamento conforme julgam correto, porque desenvolveram o "senso crítico", o discernir ético, propriedade de uma individualidade universal.
CONCEITOS-CHAVE
A - SENSO COMUM
É a primeira compreensão de mundo resultante da herança cultural e das experiências familiares que um indivíduo sedimenta em si mesmo. É um conjunto de opiniões, juízos e entendimentos no qual prevalece o contexto social em que se vive, e que se impõem como naturais e necessários, não envolvendo ponderação, avaliação ou questionamentos. Quase sempre, o senso comum é baseado em fontes de conhecimento que oscilam entre a tradição e o não saber, a ingenuidade e os preconceitos. Agir de acordo com o senso comum é se deixar guiar pela submissão às idéias dominantes e aos poderes preestabelecidos.
B - SENSO CRÍTICO
A palavra crítico vem do latim "criticus", derivado do grego kritikós (que julga, avalia, decide, ou seja, que questiona sempre). Somente desenvolvemos o crivo da razãoquando aprendemos a arte de questionar. Questionar é pensar, refletir, contestar fatos, conceitos; é apresentar idéias em objeção a outras idéias; é investigar metodicamente algo ou opiniões. Devemos ter o hábito de perguntar a nós mesmos se aquilo que temos ao nosso dispor é realmente bom, se é o melhor segundo nossa concepção de vida e se é verdadeiro. Nunca aceitemos nada, nem mesmo o que se está lendo agora, sem questionamento. O senso crítico dá ampla consciência do adequado e do inadequado.
C - COMPLEXOS
Segundo Jung, conjuntos de experiências traumáticas ou choques emotivos que têm dinâmica e atividade próprias e se estruturam como unidades autônomas no nosso inconsciente pessoal. Eles são provocados por situações psíquicas de forte comoção contraídas nas áreas sociais, culturais, sexuais, religiosas e outras tantas. Embora a infância seja a fase mais própria para se adquirirem os complexos, eles podem ser provocados e se manifestarem em qualquer fase da vida. Quanto mais consciência tivermos dos nossos complexos, mais poderemos formatar um arranjo emocional dinâmico para nosso desenvolvimento pessoal.
MORAL DA HISTÓRIA:
A crítica perniciosa é subproduto de criaturas que nada realizam de importante; não enfrentam desafios nem se arriscam a transformações ou mudanças. Os críticos mordazes ficam imobilizados, observando sistematicamente o que as pessoas dizem, fazem e pensam, para depois maldizerem as realizações alheias, usando suas elucubrações doentias e apartadas de uma mente objetiva e racional. São fortemente presos às normas sociais e a inúmeras convenções; submetem-se ao "senso comum", e não ao próprio "senso crítico". A crítica séria só admite o que é suscetível de prova. Quem é provido de senso crítico tem consciência lúcida e rompe com as posições subjetivas, preconceituosas, pessoais e mal fundamentadas, retiradas das crenças populares. As discordâncias são perfeitamente saudáveis e normais, desde que se apóiem em fatos concretos, e não nos vapores das suposições ou das projeções da personalidade doentia.
REFLEXÕES SOBRE ESTA FÁBULA E O EVANGELHO:
"Preservai-me ( ... ) do orgulho, que poderia me enganar sobre o valor do que obtenho; de todo sentimento contrário à caridade com respeito aos outros (... ). Se estou induzido ao erro, inspirai a alguém o pensamento de me advertir, e a mim a humildade que me fará aceitar a crítica com reconhecimento, e tomar para mim mesmo, e não para os outros ( ... )" (ESE, cap. 28, item 10.)
"E, se alguém ouvir as minhas palavras, e não as guardar, eu não o julgo; pois eu vim, não para julgar o mundo, mas para salvar o mundo." (João, 12:47.)
"SOMOS MUITAS VEZES MAIS MALEDICENTES POR VAIDADE DO QUE POR MALÍCIA." - LA ROCHEFOUCAULD
HAMMED

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