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09 fevereiro, 2011

O Tombo

O piso da velha calçada, além de desprezado e irregular, apresentava o agravante de acúmulo de cascalho depositado pelo morador, descuidado com o senso de vida em comunidade e com os princípios básicos de cidadania.
Buracos, falhas e desníveis eram camuflados pelo crescente capim que se apossava da calçada. Não chegavam a ser um quebra-mola de pedestre, mas bem que podiam se transformar num quebra-pé para quem estivesse desatento no seu andar. Como passar pelo reduzido espaço sem uma topada, leve que fosse? Como saltar os indesejáveis obstáculos deixados no chão, havia tanto tempo, a ponto de estimular o crescimento do mato vadio, saído de suas entranhas aparentemente estéreis?
Como ficaria o percurso para um idoso, uma criança ou um deficiente físico, sujeito às ameaças das urbanas armadilhas?
Pois foi assim mesmo. Carlinhos se deslocava naturalmente pelo pretenso passeio, propulsando sua cadeira de rodas movida pelo esforço de seus braços, treinados para servirem de máquina e força motriz compensadora de seus limites físicos. Seus olhos atentos se fixavam no objetivo a alcançar, enquanto seu silencioso veículo deslizava junto ao meio fio da estreita calçada.
O inevitável aconteceu.
A pequena roda dianteira desceu brusca na invisível depressão, em obediência à impiedosa gravidade, comprometendo o equilíbrio da frágil cadeira, que pendeu sobre o asfalto sem que seu ocupante tivesse qualquer chance de não tombar junto. Num daqueles lampejos em que voltamos a acreditar na existência e proteção dos anjos da guarda, nenhum veículo passava no momento da queda!
A chuva, que voltava despercebida e indesejada naquele momento, era um novo complicador para a delicada situação. Aí, confirmamos que os germes da solidariedade renascem nas almas das criaturas, despertando de seu sono letárgico.
A rua que parecia deserta na manhã de segunda-feira mostrou voluntários de ação imediata, surgidos repentinamente, não se sabe de onde, como nos lances de magia desconhecida.
O motorista do desbotado Escort parou seu carro imediatamente e correu para o socorro. Da oficina de sapateiro que parecia desocupada, acudiu espontâneo artífice, atravessando a rua estabanado e sem olhar para os lados. A dona de casa que conduzia seu cãozinho pelo canto das marquises, a despeito de idosa, correu como atleta para o ponto de resgate. O empresário que acabava de estacionar e organizava sua agenda para algum negócio, largou os papeis no banco traseiro e partiu agitado sem sequer fechar os vidros de seu moderno carro. Mais dois corpulentos auxiliares brotaram do nada e se aproximaram sem vacilar em direção ao acidentado.
Logo a cadeira estava desvirada com seu passageiro a bordo, sem qualquer ferimento. Apenas, sua camisa estava suja de terra e seu ombro esquerdo empretecido da mistura de asfalto com resíduos do entulho que desfigurava a calçada.
O amor ao próximo continua vivo.
Graças a Deus!
E Carlinhos, como estaria física e emocionalmente depois de haver capotado em poucos segundos, ainda que, trafegando em velocidade de tartaruga cansada?
Enquanto ele se reorganizava, percebemos que possuía uma sonda urinaria ao lado esquerdo do abdome, que, felizmente não se danificou nem se desconectou do corpo.
Nada de reclamar. Nada de lamentar ou gemer. Nada de aproveitar o momento para estimular a piedade ou fazer pedidos a seus benfeitores de ocasião.
Não tinha vocação para coitadinho!
Simplesmente agradeceu, agradeceu e agradeceu.
Chegou até a sorrir.
E prosseguiu em seu caminho deixando a todos surpresos pela lição de maturidade, otimismo e auto-estima.
Cada um voltou para seu lugar em meditativo silêncio, assimilando com respeito e admiração as lições daquele episódio de rua, tão comum mas tão excêntrico, sem se dar conta de que a chuva fina já havia molhado a todos com seu gotejar suave, persistente e teimoso...
 Do Livro: Retalhos , Paulo de La Pena
"Junte-se a nós neste ideal: divulgue o Espiritismo."

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